Mercês acordou e olhou a janela desprovida de cortinas. Lentamente, levou as mãos ao rosto, sentindo os raios-do-sol acariciarem-lhe a pele. Por instantes, ficou confusa... era bom o que sentia, vinha de fora... atravessava os vidros.
- Alice, Alice, vem cá! Toca o meu rosto...
- Mãe querida, são os raios-do-sol... o sol é quente. Vamos levantar, eu ajudo-a.
- Desculpa, mas quem és? Não te conheço...
- Oh mãe, sou a sua filha. Ainda há pouco me chamou Alice, eu vim, mas não sou Alice, sou Maria.
- Alice, Maria... como gosto desse nome, e eu, como me chamo?
- Mãe, chama-se Mercês. Então já não se lembra do seu nome?
Todos estamos expostos a uma situação destas, a perda da memória. A doença de Alzheimer, progressiva e irreversível, que nos pode transformar em vegetais, fechar-nos num gueto, roubar-nos a identidade, o nosso passado, o nosso presente. A memória, o que nos torna tristes ou contentes, o que nos permite perceber quem somos, o que fomos, quem amámos, quem desejámos. Tudo o que vivemos, todas as emoções, os momentos de angústia, de sofrimento, mas também os momentos de felicidade. A memória, que nos relembra o nosso primeiro beijo, dado às escondidas... As pequenas mentiras que dissemos aos nossos pais, por paixão, talvez... O nosso primeiro encontro ou o conto de fadas que vivemos, no dia que dissemos, sim, àquele que idealizámos ter ao nosso lado, para a vida inteira.
A memória da nossa primeira viagem, de barco ou de avião... ou o momento de exaltação, de profunda alegria, de êxtase, ao acariciarmos, pela primeira vez, um filho nosso ao nascer... As lágrimas choradas, de revolta e angústia, pela perda de alguém que muito amámos. A memória dos nossos amigos, daqueles que nos acompanharam ao longo do nosso percurso de vida. Tudo o que fomos, resume-se agora a um olhar estagnado no tempo, ao tempo que não sabemos sequer o que é... Os rostos dos nossos entes queridos que já nem reconhecemos. Os cheiros, os risos, as cumplicidades que já não partilhamos. Ficámos reféns de uma doença que nos roubou o nosso "eu", atirou-nos para o mais profundo dos abismos e legou-nos uma única certeza: a certeza de que o futuro não existe, e o presente é apenas a "memória" do que já não somos.
Abril de 2010
Belo Blog caríssima e muitos belos poemas, tentarei voltar, entretanto roubei um texto para por no FB. Beijos
ResponderEliminarObrigada, Fernando Oliveira, pelo seu comentário. Um beijo.
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