domingo, 4 de abril de 2010

LAPSUS MEMORIAE


     Mercês acordou e olhou a janela desprovida de cortinas. Lentamente, levou as mãos ao rosto, sentindo os raios-do-sol acariciarem-lhe a pele. Por instantes, ficou confusa... era bom o que sentia, vinha de fora... atravessava os vidros.
- Alice, Alice, vem cá! Toca o meu rosto...
- Mãe querida, são os raios-do-sol... o sol é quente. Vamos levantar, eu ajudo-a.
- Desculpa, mas quem és? Não te conheço...
- Oh mãe, sou a sua filha. Ainda há pouco me chamou Alice, eu vim, mas não sou Alice, sou Maria.
- Alice, Maria... como gosto desse nome, e eu, como me chamo?
- Mãe, chama-se Mercês. Então já não se lembra do seu nome?
     Todos estamos expostos a uma situação destas, a perda da memória. A doença de Alzheimer, progressiva e irreversível, que nos pode transformar em vegetais, fechar-nos num gueto, roubar-nos a identidade, o nosso passado, o nosso presente. A memória, o que nos torna tristes ou contentes, o que nos permite perceber quem somos, o que fomos, quem amámos, quem desejámos. Tudo o que vivemos, todas as emoções, os momentos de angústia, de sofrimento, mas também os momentos de felicidade. A memória, que nos relembra o nosso primeiro beijo, dado às escondidas... As pequenas mentiras que dissemos aos nossos pais, por paixão, talvez... O nosso primeiro encontro ou o conto de fadas que vivemos, no dia que dissemos, sim, àquele que idealizámos ter ao nosso lado, para a vida inteira.
A memória da nossa primeira viagem, de barco ou de avião... ou o momento de exaltação, de profunda alegria, de êxtase, ao acariciarmos, pela primeira vez, um filho nosso ao nascer... As lágrimas choradas, de revolta e angústia, pela perda de alguém que muito amámos. A memória dos nossos amigos, daqueles que nos acompanharam ao longo do nosso percurso de vida. Tudo o que fomos, resume-se agora a um olhar estagnado no tempo, ao tempo que não sabemos sequer o que é... Os rostos dos nossos entes queridos que já nem reconhecemos. Os cheiros, os risos, as cumplicidades que já não partilhamos. Ficámos reféns de uma doença que nos roubou o nosso "eu", atirou-nos para o mais profundo dos abismos e legou-nos uma única certeza: a certeza de que o futuro não existe, e o presente é apenas a "memória" do que já não somos.

Autora: Isabel Vilaverde
Abril de 2010

2 comentários:

  1. Belo Blog caríssima e muitos belos poemas, tentarei voltar, entretanto roubei um texto para por no FB. Beijos

    ResponderEliminar
  2. Obrigada, Fernando Oliveira, pelo seu comentário. Um beijo.

    ResponderEliminar

 
Licença Creative Commons
This obra is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Não a obras derivadas 2.5 Portugal License.