domingo, 21 de março de 2010

NO CORAÇÃO PARA SEMPRE


Os olhos estavam fixos no tecto. O corpo, imóvel na cama, desaparecia debaixo dos cobertores que o tentavam aquecer, naquela noite fria de Inverno.
De vez em quando, num gesto involuntário, mexia as pálpebras, para de novo os olhos voltarem a alhear-se, no silêncio do quarto.
Sem forças, queria apenas recordar. Passava por lugares distantes, por terras pequenas de casario branco e telhados vermelhos, por montes arredondados, recortados no horizonte, iluminados por um sol tórrido ou, planícies cobertas por loiras searas, dançando ao sabor da brisa, quente e sufocante.
Depois, caminhava até junto dos barcos ancorados, alinhados nas docas dos lugares distantes, balançando nas águas, levemente onduladas, quando, findo o dia, a noite se aproximava e a Lua plena espreitava e tingia as águas de prata.
O tempo não existia. A dor era profunda, enraizada nas suas entranhas, pela perda do único e grande amor da sua vida.
Estava viva ainda, sim, porque não queria que esse amor morresse... vivia através dele, era o seu alimento. E continuou a recordar o  mundo que já vivera, os momentos de paixão intensa, os beijos trocados que lhe incendiaram o corpo, os jantares intimistas, as carícias na pele desnudada.
Sentiu o rosto molhado das lágrimas que lhe escorriam e libertavam a saudade que sentia.
     Recuou até ao dia em que se conheceram. Tinha sido num hipermercado. Perdido nos corredores largos e de prateleiras atafulhadas de produtos, já cansado de procurar o que ainda não tinha conseguido encontrar, de repente, viu-a e, sem hesitar, perguntou-lhe:
- Desculpe incomodar, sabe dizer-me onde está o molho de soja?
Ela olhou-o e... com ar pensativo, tentou lembrar-se.
- Ah, já sei! - Disse - No corredor ao lado, onde estão as especiarias.
- Muito obrigado. Estou cansado de procurar e, confesso, já estava quase a desistir... mas o cozinhado que quero fazer, tem mesmo que levar o molho, compreende? E agradeceu mais uma vez.
     Joana, continua a relembrar momentos felizes, de uma vida partilhada, sem se dar conta que o dia clareia. No dia em que se conheceram e , por coincidência, escolheram a mesma caixa até dez artigos. Olharam um para o outro e, mais uma vez, sorriram, esboçando um cumprimento afável e discreto.
Ele estava à frente dela na fila e, quando pegou no saco para pôr as compras, deixou cair o frasco do molho de soja, salpicando as calças. Atrapalhado, pediu desculpa pelo sucedido à empregada da caixa. Naquele instante, Joana estendeu-lhe um lenço de papel, com o propósito de ele minimizar os efeitos do produto no tecido.
Embaraçado, agradeceu. Enquanto limpava o que podia, Joana pagava as suas compras. Ele, consciente do gesto dela, quis retribuir a sua amabilidade, convidando-a a tomarem um café. Ela aceitou, embora não tivesse o hábito de aceitar o que quer que fosse de um estranho. Afinal, tudo tinha sido um mero acaso.
     Procuraram, dentro do espaço comercial, um local mais reservado. Apresentaram-se um ao outro, conversaram, divagaram, riram e, depois desse café, muitos outros se seguiram... até ao dia em que ele a pediu em casamento.
Joana recorda o momento em que Pedro lhe falou sobre a sua doença. Pedro era portador de uma doença auto-imune, degenerativa do sistema nervoso central - esclerose múltipla - para a qual, infelizmente, ainda não há cura. Existem fármacos que ajudam a atrasar a sua progressão. Uma doença que, a médio ou longo prazo, o iria limitar. Precisaria de todo o apoio no futuro, porque apenas o corpo iria, aos poucos, morrer. A sua capacidade mental, essa, manter-se-ia intacta, o que seria ainda mais doloroso para Pedro, sentir que o seu corpo seria inútil, que para nada lhe serviria.
Joana, perante tal revelação, recorda os minutos de profunda angústia que se seguiram. A sua respiração quase ficou suspensa, o olhar parado, projectado no olhar de Pedro, a boca silenciada das palavras que queria dizer-lhe mas que não conseguia... Depois, num gesto simples e verdadeiro, abriu os braços e assim ficaram abraçados um tempo infinito... Sentiu, nesse momento, que nada mudaria, pelo contrário, a admiração por ele seria ainda maior. Uma pergunta se colocava a si própria: estaria preparada para o desafio que a esperava? Como responder? A única coisa de que tinha certeza, era que o amava e que a sua vida só faria sentido ao seu lado.
O Sol já desaparecera no horizonte. As horas tinham passado sem se darem conta. Como era bom estar com ele. Relembrar hoje uma vida feliz, cheia, partilhada, mesmo quando ele começou a piorar e ficou impossibilitado das tarefas mais comuns; como comer, lavar-se, fazer amor, passear.
O amor da sua vida, a pessoa que lhe tinha proporcionado tantos momentos de verdadeira felicidade, ficara confinado a uma cadeira de rodas. A maldita doença tinha-lhe minado o corpo, mas não a alma. Essa, continuava pura, sã. A mente, intacta e lúcida, queria o que o corpo recusava. Joana esteve sempre ao seu lado, sem vacilar, amando-o, numa entrega plena de dedicação.
     Um dia, pela manhã, como habitualmente, Joana levantou-se e dirigiu-se à casa de banho, para preparar-lhe o banho. Por volta das oito horas, chegariam, a enfermeira e uma auxiliar, que a iriam ajudar a tratar do Pedro. Quando regressou ao quarto para o acordar com beijos, como sempre fazia, ele  não reagiu... Olhou-o, incrédula, o seu rosto estava sereno e o seu olhar ausente, estranhamente parado. Naquele momento percebeu que tinha perdido o Pedro. A doença tinha-lhe roubado a vida. Joana desatou a chorar, compulsivamente. Abraçou-o tanto, tanto, como quando se abraça alguém que não se quer ver partir... e assim ficou, segurando nos braços o corpo inerte e ainda quente do seu companheiro, do seu grande amor.
Desde então e sempre que pode, Joana passa as horas nos lugares percorridos pelos dois, no areal da praia, onde gostavam de sentar-se a olhar o mar... O mar que continua a ser só deles.

Written by: Isabel Vilaverde
18 de Março 2010









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